Ou: Eu também uso pasta Crest!
O momento de começar a fazer voos internacionais é de grande importância na vida de um comissário. Como eu já comentei no post
A porta da felicidade, é o sonho de todos, o ápice da carreira. Comissários de voos internacionais fazem parte de outra casta, e todo comissário sonha com o dia em que fará parte dela.
Após três anos fazendo voos domésticos, dois deles como Chefe de Equipe, tinha chegado a minha vez de ser promovida para os voos internacionais! Que alegria! Que felicidade!
Finalmente teria na minha geladeira cervejas importadas, queijos e outras guloseimas que por aqui não se encontram. Poderia ter acesso a um monte de bugigangas eletrônicas, algumas sem utilidade aparente. E teria no armário do meu banheiro a pasta de dentes Crest!
Se ainda hoje é difícil encontrar coisas importadas a um bom preço, imaginem no final dos anos oitenta, quando as importações não eram liberadas e muito pouca coisa podia se encontrar em terras tupiniquins. E o que se encontrava era por um preço absurdo!
Todo comissário internacional que se prezasse usava pasta Crest, comprada na América. Era um diferencial. Hoje se encontra Crest na drogaria mais próxima da sua casa, mas naquela época quem usava era porque viajava para o exterior com frequencia e tinha acesso fácil, e isso era sinal de status.
Fiz o curso de habilitação da aeronave para tirar o novo CHT, tive uma breve aula da sequencia de serviço no novo avião
wide-body e pronto.
Saiu a minha escala. Primeiro voo: Miami! Nunca tinha estado em Miami! Oba!!! Paraíso das compras! Da pasta Crest! Dos eletrônicos! Que maravilha! E para completar minha felicidade, uma amiga que morava em Miami e trabalhava em navios que fazem cruzeiro pelas Bahamas tinha me conseguido um cruzeiro de um dia inteiramente grátis! Saía de manhã cedo e voltava à noite, parando em duas ilhas.
Chegou o grande dia. Já no avião me apresentei ao Chefe de Equipe e disse que aquele era meu primeiro voo no novo equipamento.
Aeronaves
wide-bodies costumam ser divididas em três classes: Primeira Classe, Classe Executiva e Classe Econômica.
Os neófitos começam ralando na Econômica, que na época era conhecida como Pavilhão Nove (alusão à rebelião de presos no pavilhão nove do presídio de Carandiru em São Paulo), Vila Socó (por causa de alguma novela que tinha uma comunidade pobre com esse nome) ou Umbral (quem viu o filme Nosso Lar sabe do que se trata).
Hoje certamente já cunharam nomes mais criativos, porque se há alguma coisa que não falta aos comissários é imaginação fértil.
Além do Chefe da Equipe, tinha também os Supervisores da Primeira Classe, da Executiva e da Econômica.
Ao fazer o
briefing, o chefe me recomendou à supervisora da econômica dizendo que era meu primeiro voo.
A supervisora revirou os olhos e fez aquela expressão de
"Ai, que saco! Vai me dar trabalho!" Foi nesse momento que eu percebi que minha estréia na aviação internacional não seria tão agradável quanto eu gostaria.
Como boa profissional que sempre fui, fingi não perceber a grosseria daquela senhora gorda e de meia idade e fui me apresentar aos demais colegas. Ao me apresentar aos colegas da Primeira Classe, nova patada. A comissária que por lá reinava me olhou com se eu fosse um nada, e meio que me mandou voltar para o meu lugar.
Comissários da Primeira Classe e da Executiva constituem uma sub-casta dentro da casta dos que voam internacional. Como se sabe, antiguidade é posto em aviação civil, e estes profissionais são os mais antigos, os que tem mais tempo de voo, e alguns se sentem como vacas sagradas.
Engoli a grosseria da vaca e atribuí-a ao fato de eu ser "carne nova", jovem e de boa aparência, enquanto que ela era um tribufú.
Os demais colegas da econômica, todos com cara de entediados, me deixaram super "à vontade": "Você vai olhando o serviço e aprendendo." Oi???
Veja bem: Eu não queria nenhum tapete vermelho! Queria apenas que eles fossem um pouco mais receptivos, que compreendessem minha insegurança porque afinal todos eles passaram por isso. Que tivessem um pouco mais de empatia.
Terminado o embarque com o avião lotado até o talo, afinal era Dezembro, decolamos e começou o serviço. Eu que já estava nervosa, depois da recepção "calorosa" fiquei pior ainda. O
trolley das bebidas era diferente do que eu estava acostumada. Parecia que eu estava empacada naquele corredor enorme e não conseguia sair do lugar.
A supervisora balofa cheia de "Ai, meu Deus..." e de "Anda logo!" E como que para piorar minha desgraça, cada passageiro resolvia me pedir três bebidas ao mesmo tempo.
Quando eu precisava ir na Classe Executiva solicitar alguma coisa, a baranga da primeira classe se materializava por lá, sempre com alguma patada na ponta da língua: "Você não pode passar por aqui!" "Você não pode usar esse banheiro!" "O que você está fazendo aqui? Volte para o seu lugar!"
Se eu não estivesse tão ansiosa para chegar, ficaria mais chateada do que fiquei. Mas resolvi deixar passar.
Aterrissamos em Miami de manhã bem cedo, o dia estava amanhecendo. Ao chegar ao hotel, tomei banho, troquei de roupa e fui encontrar minha amiga no porto para fazer o cruzeiro, dando graças a Deus por não precisar depender da companhia daqueles espíritos sem luz.
Cheguei de volta quase duas da manhã, passando antes em Coconut Grove com minha amiga para tomar umas cervejas. Estava tão excitada com as novas emoções que me esqueci de ficar cansada.
Na manhã seguinte encontrei com uma colega que estava saindo para fazer compras e me levou com ela para conhecer as lojas. Fiz o reconhecimento e comprei algumas coisas (pasta Crest inclusive rsrs).
Voltamos ao hotel, descansei um pouco e já era hora de me arrumar para o voo da volta. Esperava que a volta fosse melhor do que a ida, mas não foi...
O voo estava lotado. A supervisora continuou revirando os olhos e pegando no meu pé. A baranga da Primeira Classe não podia me ver que soltava alguma coisa. Os outros colegas continuavam com o ar
blasè.
Lá pelas tantas, ao ser acordada para o serviço de café da manhã, a supervisora baleia instruiu a mim e aos outros para nos arrumarmos no banheiro da primeira classe que era menos concorrido, porque o voo tinha adiantado e chegaríamos meia hora antes do previsto. Então o tempo para fazer o serviço tinha encurtado.
Banheiro da Primeira Classe??? Ai, meu Deus! A baranga não ia me deixar em paz! Mas eu obedeci e fui. Para não ser acusada de estar demorando eu nem escovei os dentes. Arrumei rapidamente o cabelo, passei um batom e saí. Adivinhem quem estava me esperando na saída? Ela mesma! O tribufú da Primeira Classe, que para não deixar passar em branco me disse: "Anda logo porque o serviço na Econômica já está quase terminando!"
Aí já era demais! Chamei-a num canto e disse-lhe ao pé do ouvido: "Eu também não fui com a sua cara..." Sem esperar resposta,virei as costas e fui!
Pousamos finalmente no Rio, e eu agradecia a Deus por não ter tripulação fixa, e que a chance de se reunir tantas pessoas nefastas num mesmo voo era remota.
Um dos colegas da econômica resolveu ser simpático (um pouco tarde, né...) e me perguntou: "E então? Gostou do seu primeiro voo internacional?"
E eu muito sinceramente respondi: "Não. Mas eu tenho certeza que os outros serão melhores!"
E felizmente eu estava certa!
Obs. Para melhor entendimento de algumas palavras usadas no post, sugiro a leitura da página
Pequeno Glossário da Aviação Comercial